24 de agosto de 2015

NO TOPO DO FUNDO

NO TOPO DO FUNDO

Era manhã de sábado e Paco se preparava para uma viagem de escalada. Todos os equipamentos ajeitados na mochila, poucos itens pessoais, já que voltariam no dia seguinte. “A mochila nem ficou tão cheia”, pensou ele. A barraca e saco de dormir bem compactos para colocar no carro que passaria para pegá-lo em alguns minutos. Já estava abrindo a porta para sair, quando se lembrou de pegar um agasalho para a noite fria. Junto com o agasalho, aproveitou e pegou uma garrafa de conhaque que completaria exatamente o espaço que sobrara na mochila. Não era costume levar esse tipo de bebida para essas viagens, mas o frio justificava a opção. E, afinal de contas, ninguém seria obrigado a beber.

A viagem começou e todos estavam muito empolgados com a programação. Chegariam no fim da tarde ao ponto de início da subida. Dormiriam e subiriam no dia seguinte. Alguns se conheciam de outras escaladas e outros eram caras novas no grupo. Havia um grande entusiasmo, pois encontrariam um jovem alpinista bastante conhecido por seus feitos e escaladas arriscadas. 

Paco era conhecido por sua simpatia e carisma. Sempre tinha uma boa história pra contar e envolvia as pessoas com isso. O que os outros não sabiam, e talvez, nem o próprio Paco tivesse completa consciência, é que ele possuía instintos de morte. Algumas vezes tinha sonhos nos quais matava pessoas, mas nunca havia feito nem pensado em cometer tal ato. 

Fim da tarde e um maravilhoso por do sol se mostrava entre as montanhas do lugar. As barracas já estavam montadas em círculo. Uma fogueira estava pronta para ser acessa no centro do acampamento. As pessoas começavam a bater papo e comerem, quando, finalmente, conheceram o tão famoso e destemido jovem. Um rapaz de vinte e poucos anos, longilíneo e um tanto quanto convencido, cujo apelido era Cabrito. Algumas vezes era possível vê-lo se gabando disfarçadamente de seus feitos. Ele havia chegado alguns dias antes e já havia feito a subida umas duas vezes para conhecer o percurso, pois seu objetivo era realizar um free solo, um tipo de escalada feita sozinho e sem equipamentos de segurança, somente o homem e a rocha. 

Após o jantar, sentaram-se em roda e conversavam sobre a escalada do dia seguinte. A noite estava gelada e, ao ouvir a primeira referência sobre o frio, Paco comentou como seria legal ter um conhaque para esquentar. Todos concordaram com sua afirmação acenando que era realmente uma boa ideia se aquecer um pouco, visto que o papo estava tão bom. A lua cheia deixava a noite bastante clara. A garrafa de conhaque reluziu ao ser exibida por Paco, ao que todos o receberam com um grande sorriso no rosto dizendo: “este é o cara”. 

Todos estavam alegres e aquecidos com a bebida. Escutavam de Cabrito as incríveis narrativas de suas escaladas. Paco perguntou se alguém já havia realizado o free solo na montanha em que iriam escalar. Cabrito, meio constrangido por não ser o primeiro a fazê-lo, disse que sim, que outros escaladores já haviam subido, ao que Paco emendou outra pergunta: “E à noite, alguém já fez”? 

Os olhos de Cabrito brilharam refletindo as chamas da fogueira. Um desafio havia sido lançado, o reconhecimento que teria ao ser o primeiro a enfrentar o desafio a noite lhe arrebatou a mente. Não via outra coisa senão a imagem de sua silhueta contra a lua no topo, exibida na capa de uma revista. Tomou mais um gole de conhaque, levantou-se e disse: “Eu vou subir agora.” O sentimento na roda foi de empolgação, receio, euforia. Colocaram-se de pé e bradavam gritos incentivadores: “vai lá, manda ver, que coragem!” Duas pessoas, ainda sentadas, temiam pelo risco, mas, devido a empolgação geral, mantiveram-se quietas. 

Ao pé da rocha, todos dançavam e rodavam suas lanternas ao som de uma música do Van Halen. Cabrito calçou as sapatilhas, pegou seu saco de magnésio e começou a subida. A galera gritava e agitava enquanto ele começava a desaparecer pelas sombrias curvas da escalada. 

A galera curtia o momento até que um forte barulho anunciou a queda de Cabrito. Sua vida escorria como o sangue que molhava a pedra onde sua cabeça havia mirado. Um tiro tão perfeito que era impossível errar. 

E assim, Paco fez sua primeira vítima, um projétil humano contra um alvo de pedra, sem vestígios, sem provas e, principalmente, sem acusação. Um encontro marcante entre um homicida e um suicida. Afinal, qual o problema em dar um empurrãozinho em quem está no topo do prédio querendo pular?